criatividade sem dinheiro é sobrevivência.
diante de mercados precarizados e consumidores que ainda encontram dificuldade para compreender (e remunerar!) trabalhos provenientes da propriedade intelectual precisamos falar sobre o óbvio.
enquanto estrategista de branding, estar “por dentro” do que acontece na internet é parte significativa do meu trabalho e recordo-me bem no início do percurso de ser aquela que pre-ci-sa-va dar minha opinião sobre os assuntos que estavam sendo comentados. ainda que fizesse isso entre amigas, colegas de profissão, mesas de reuniões e nem sempre através do digital, confesso que já gastei meu latim (e meu botox! hahaha) debatendo coisas que achava que precisavam de defesa.
graças a maturidade, compreendi que não preciso me desgastar, nem dar minha opinião sobre tudo, que muitas vezes não tenho um ponto de vista formado e isso não minimiza minha intelectualidade, e que tudo bem eu não conseguir formular teorias e defendê-las com convicção quando eu sequer alcanço a complexidade do assunto. entre senhores da razão e Verdades disseminadas, tenho para mim que a internet seria um lugar menos intragável se falássemos menos e ouvíssemos mais, como já dizia uma grande amiga “ninguém pensa falando”, mas tem quem na nossa sociedade ignora essa máxima só para não ficar de fora da pauta da vez e é nessas que as bobagens são ditas, onde muita gente se perde no personagem.
pensei se deveria escrever, se valeria o estresse, se serei mal interpretada, mas como as CONVERSAS PARALELAS dessa semana traziam um debate sobre protagonismo feminino, talvez permitir que esse fluxo de consciência atravesse nosso espaço seja interessante e no fim, esteja tudo relacionado.
vale o disclaimer simplesmente para que não haja qualquer tentativa de minimizar a realidade do que venho dizer.
seguirei na defesa de que a criatividade está ao alcance de todos, e quem coloca aura de mistério sobre ela está conscientemente complicando algo que é inerente ao ser humano, ainda que apresente-se das formas cada vez mais plurais. minha leitura é que criatividade é a capacidade de encontrar soluções, de adaptar-se, de aglutinar e costurar temas que muitas vezes parecem distantes e que através da capacidade humana-criativa torne-se uma mistura boa, coerente, capaz de provocar reflexões, transmitir mensagens, emocionar nossa existência.
não é à toa que tanta gente quer trabalhar diretamente com criatividade, é algo atraente, potente, transformador em múltiplos sentidos.
e tem época que evoca mais a criatividade que o carnaval? talvez não tenha, apesar da bateria social baixa me fazer cansar apenas ao escrever a palavra carnaval, sei apreciar a catarse das ruas, a beleza dos bailes, o lúdico das fantasias, carnaval é um deleite!
e entre tantos conteúdos, releases, resenhas que observei nos últimos dias tenho me questionado sobre criações, montações e a criatividade envolta nisso tudo (até nos red carpets, já que temos vários acontecendo!), comecei a refletir diante do que li sobre essa tal criatividade que não precisa de dinheiro para acontecer e isso me fez pensar se as pessoas são realmente ingênuas até esse ponto ou se algumas narrativas tratam-se de pura alienação ou até desonestidade.
refletir privilégios e acessos é o básico esperado de um ser humano funcional que carrega o mínimo de sensatez, mas olhar (e vincular!) para a equação DINHEIRO + CRIATIVIDADE é mais que necessário, é urgente porque a criatividade pela criatividade não pode e nem deveria ser o único caminho, não importa de qual segmento da criatividade façamos parte.
dinheiro não é um mero detalhe quando se fala de criatividade, ele é elemento fundamental para o desenvolvimento de pessoas e de todo um mercado.
nessas quase 2 décadas de carreira (mais precisamente 17 anos completados em setembro!) em que me deparo desde budgets milionários (literalmente) até orçamentos de marcas que tem quase nenhum dinheiro para executar suas ideias, sinto como parte da minha responsabilidade falar o maior clichê de todos.: DINHEIRO FAZ TODA DIFERENÇA.
dinheiro te dá acesso à melhores matérias primas, te permite conseguir mão de obra extremamente qualificada e justamente remunerada, verba compra liberdade criativa e qualquer pessoa que disser o contrário mente.
com dinheiro direcionamos nossas energias para criar na excelência ao invés de gastar os neurônios pensando de forma desesperada em soluções que nos ajudem a sobreviver realizar algo que sinceramente? sem dinheiro dificilmente alcançará sua máxima potência.
entre os desfiles suntuosos das semanas de moda (que acompanho apenas das marcas que admiro hoje sem o desespero de gabaritar todo lineup, graças a maturidade também!) algo me chamou atenção.: simone rocha para gaultier.
meus olhos não foram atraídos apenas pelas roupas que estavam um desbunde nas passarelas, nem somente pelo alinhavar excepcional da identidade da estilista irlandesa com a ousadia do universo semiótico da marca desse nome francês que tem sido até meio que ofuscado por desfiles e marcas mais viralizadas (palavra de ordem da atualidade), mas foram as entrevistas de simone que captaram minha atenção. a ponto não apenas de reassistí-las, mas rever o desfile 3x e diante da minha inquietação partilhar minhas percepções com comunicadoras intelectuais da moda e amigas pensadoras queridas que me ajudaram a desmembrar essa efervescências de ideias.
enviei um longo áudio para a antropóloga inteligentíssima lívia pinent (que inaugurou nossa série de entrevistas da versão PRIME da comunidade, você vê abaixo!) e debatemos o quanto o simone parecia ter se divertido mais, criado melhor e entregado um produto final digno dos aplausos animados (de gaultier, aposentado desde 2020 e de toda gente graúda da moda que estava ali vendo uma simplicidade em seu máximo calibre) e com uma possível boa recepção mercadológica, que no final, é isso o que manda, o potencial de aumentar não só venda, mas o awareness, que consecutivamente gera mais lucro.
simone rocha é uma neo criativa que capitaneia sua marca homônima e que assim como muitas pessoas que fazem parte da indústria, precisam dar conta de fazer com pouco, mas é quando encontra a verba de um nome como JPG que há o ápice, onde faz escolhas e concebe com maestria, qualidade e principalmente? liberdade.
não é necessário confirmações oficiais para ver o óbvio, com certeza tudo o que esteve à disposição da estilista para executar essa visão estava num nível de acesso completamente diferente do que ela mesma dispõe para colocar suas criações no mundo, afinal, trata-se de uma Paris Fashion Week, o jogo é outro.
o que me leva ao risco de soar repetitiva.:
dinheiro faz diferença no resultado, altera o saldo final e por isso me incomoda tanto ouvir disparates que dão a entender que dinheiro não é um agente modificador e potencializador da criatividade.
e veja bem, não estamos aqui numa exclusão de méritos. seja de criadoras, criativas e artistas que matam um leão por dia para colocar sua arte no mundo ou por exemplo, como é incrível ver a creator camila de lucas num desenvolvimento lúdico, expressivo de uma fantasia feita inteiramente com balões para o Baile da Vogue, demonstrando inclusive que nem sempre uma figura pública precisa se amparar numa marca gringa ou em looks de investimentos astronômicos para cumprir os requisitos de um tema de forma magistral.
contudo, entender que moda (beleza, gastronomia, arte, home design, decor e por aí vai) é criatividade, mas que TAMBÉM precisa de acesso para acontecer, é prioritário para que as atuações criativas sejam vistas com o valor que tem, de uma vez por todas.
criatividade sem dinheiro é sobrevivência.
criatividade precisa de dinheiro.
criatividade precisa de acesso.
criatividade precisa de incentivo.
criatividade precisa ser remunerada.
enquanto houver essa persistência equivocada no discurso de que moda e qualquer segmento que banha-se em criatividade precisa apenas de criatividade para acontecer continuaremos fomentando a ideia de não precisamos ser devidamente remuneradas para criar. que a criação é como um espasmo, acontece, sem ser necessário esforço.
a criatividade precisa de acesso.
vivemos, ocupamos e investimos tempo, dinheiro e uma energia dantesca para lutar pelas nossas permanências num mercado precarizado que vive nos botando à margem e me responda com honestidade.: quantas de nós durante diferentes etapas do nosso percurso não nos deparamos com pessoas que não medem esforços em nivelar nossos trabalhos por baixo como se qualquer um fosse capaz de desenvolver?
a criatividade é tratada como algo banal.
tudo isso por uma foto?
por um vídeo?
por uma consultoria?
mas é só uma produção!
é só uma legenda!
é só uma publicidade.
todo mundo já se deparou com um primo, marido, sobrinho que também trabalha com isso e faz beeeeem mais barato, são incontáveis as histórias, deixou de ser motivo de estresse e virou meme, porque só rindo para sobreviver a esse tipo de micro agressão intelectual quase que cotidiana.
enquanto não rompermos com as crenças limitantes relacionadas a criatividade e o dinheiro, não lidarmos com essa quase culpa cristã inconscientemente introjetada em nós (como se todo mundo tivesse que fazer um voto de pobreza, viver de forma franciscana), nos distanciarmos desse arquétipo de artista falido e investirmos em educar de forma enfática nosso mercado, nossos clientes e nossa audiência continuaremos contribuindo em tratar toda e qualquer propriedade intelectual, criativa e artística com desdém.
ace$$o é nece$$ário para criar.
vivemos numa sociedade do espetáculo, numa época de aparências, mais do que ser e ter, precisamos MOSTRAR para sermos validadas, particularmente acho o jogo fútil, vazio, sujo, injusto, chato para car@lh0, mas certas falas colocam tudo no mesmo balaio como se dinheiro fosse uma condição dispensável, quando ele é inerente ao desenvolvimento qualitativo da criatividade.
em qualquer que seja o segmento, indústria ou lugar, dinheiro corrompe, mas assim como pode ter um mal uso, um emprego superficial com caráter individualista, também pode trazer direcionamentos e mudanças significativas que não seríamos capazes de alcançar sem ele, fazer as pazes com o dinheiro é crucial inclusive para ganhá-lo devidamente.
ao defendermos certos pontos de vista, reafirmamos que tudo carece apenas de uma doação inventiva e que o dinheiro não tem força de modificar totalmente a soma de fatores, é ilusão pura. é vender indiretamente a ideia de que basta ter criatividade que estamos em pé de igualdade e sinceramente, além de ingênua, essa é uma ideia falaciosa.
me incomoda a glamourização da criatividade sofrida, que vem através da luta e da escassez e tudo isso precisa dar espaço para sermos agentes de micro revoluções com as ferramentas (e statements) que temos em mãos, junto disso pleitearmos mudanças, (inclusive governamentais) que olhem para a arte, a cultura e para a criatividade com mais carinho, cuidado e investimento.
quem já passou em mentoria sabe que vivo repetindo a máxima “precisamos buscar soluções porque dinheiro sempre vai ser uma questão independente do tamanho da marca”, com toda certeza sempre defenderei que temos que achar caminhos mesmo diante dos desafios monetários. mas devemos viver novas relações com o dinheiro para compreender o valor do que estamos colocando na mesa e direcionar para um cliente que possa pagar por aquela intelectualidade, porque uma ideia tem valor e tem preço e não, nem sempre é barato.
não, nem sempre rola fazer com pouco.
aprendi essa máxima aos 21 anos trabalhando com paulo martinez, um dos maiores nomes do styling do brasil e do mundo. lembro dos primeiros shootings onde realizar as ideias de paulo era como buscar um equilíbrio entre suas visões de vanguarda e o valor que eu tinha em mãos para operar resultados que no fim, eu sequer sabia que eram possíveis, era como mágica. então desatar nós e se virar nos trinta com gingado, jeitinho brasileiro, bossa e o que mais for necessário é sim crucial, sem deixar de reivindicar todas ferramentas (e entre elas está o dinheiro) para fazer com menos sofrimento e mais integridade criativa.
desejo profundamente que possamos profissionalizar nossas trajetórias, mas acima de tudo principalmente, sair desse ad eternum de sobrevivência, de “dar um jeito”. porque aqui mora uma das questões sensíveis sobre enxergar o próprio valor, talvez ajude até mesmo a recalcar menos o fato de que gostaríamos de ter acesso e dinheiro para realizar nossas ideias, entregar nossos melhores elementos.
que nossa mudança de mindset, de postura, que nossas exigências (que precisam acontecer, ninguém faz criatividade só com criatividade) possam gerar como reflexo um mercado mais sustentável, mais próspero, com distribuição de valores, com oportunidades amplificadas, com lideranças mais plurais, com remunerações mais adequadas se comparadas aos lucros que muitas empresas têm a partir das nossas “simples” entregas.
que a gambiarra enquanto solução seja uma escolha, não o único caminho.
e eu vou até o fim da carreira defendendo essa ideia.
beijo.
ly.
Agora que tive tempo de ler com a devida atenção. Perfeita (as always). Particularmente, preciso demais re-conceituar o que é o dinheiro (e o que tem valor, por tabela). Tks pela oportunidade de reflexão!
Muito necessário trazer essa questão e tirar esse estigma de que pra tudo se dá um jeito. Sim, nós criativas que trabalhamos nesse meio sempre vamos dar um jeito mas o dinheiro é necessário sim e faz toda a diferença. Pouco se fala sobre e só nós sabemos o perrengue do dia a dia, da cobrança de fazer milagre com poucos recursos. E como é importante nos posicionarmos tb para melhorarmos esse comportamento.